Office in a Small City por Edward Hopper

Caçadores e virgens entre as estrelas

Sem dúvida vamos continuar nos encantando com o que nos oferece esse gigantesco berçário cósmico, a vasta noite iluminada.
Vamos para fora, sorrir às estrelas, nossas ancestrais silenciosas. Hoje a noite promete.

cacadoresestrelas

Na mitologia grega, a ninfa caçadora Calisto atraía a atenção de Zeus, o deus dos deuses. Sua esposa, Hera, naturalmente enciumada, amaldiçoou a jovem, transformando-a em uma ursa. Apesar disso, Calisto resistiu, esforçando-se para continuar andando ereta, tentando ainda ser uma mulher, mas isso se tornara impossível: por mais que tentasse, ela  agora era uma ursa e não conseguia mais falar ou agir como humana. Calisto passou a viver com medo dos deuses e das outras feras, mesmo sendo também uma fera, optando pelo isolamento. Muitos anos depois, reencontrou na floresta seu filho, o caçador Arcas1, agora um adulto, e tentou abraçá-lo. Sem saber que se tratava de sua própria mãe, condenada pelos deuses, ele ergueu sua lança para matá-la. Nesse momento, Zeus, compadecido com aquela situação, parou o tempo, afastou um do outro e os colocou no céu, onde foram convertidos em estrelas. Arcas, o filho, transformou-se em Arctofilax, a Ursa Menor, o guardião da ursa. Calisto, desde então, é a magnífica Ursa Maior.

O nosso planeta se move, mas isso não é nada. Nosso sistema solar todo, dentro de uma gigantesca galáxia, chamada Via Láctea, também está em permanente viagem pelo espaço. A nossa e as outras galáxias também se deslocam, afastando-se umas das outras, em velocidades que o senso comum, a princípio, tem dificuldade em aceitar. Ninguém sabia disso até perto de um século atrás. Tudo no cosmo é gigantesco, se comparado aos nossos padrões de medidas. Bom, e o que temos com isso? É que as estrelas que formam as constelações que vemos daqui também estão muito distantes umas das outras, em profundidades diferentes em relação ao nosso ângulo de visão. Mesmo assim, ao observar as mais brilhantes, encontramos formas e imagens conhecidas por nós – um caranguejo, um peixe ou um touro.

Os mesmos pontos em destaque, se ligados de outra maneira, podem formar imagens diferentes. Por isso o que os antigos gregos viram como uma ursa foi visto pelos chineses como um veículo divino; pelos europeus medievais, como uma carruagem (a Carroça de Charles); pelos ingleses, como um instrumento agrícola; e pelos franceses, menos imaginativos, como uma simples caçarola. A constelação da Ursa Maior poderia ser, portanto, a constelação da Caçarola. Talvez fosse um signo do zodíaco, e você diria: “Meu signo é Caçarola. Meu destino foi esse, ter nascido sob essa influência, por isso eu gosto tanto de cozinhar.”. (Ou de comer, por que não?)

Quanto a nós, não a vemos sob forma alguma, pois ela é uma constelação setentrional, visível somente aos habitantes do hemisfério norte. A propósito, a palavra grega para ursa (árktos) também deu origem a Ártico e ao nome Artur, como o do lendário rei tutelado pelo mago Merlin, associando-o às qualidades de um urso, talvez por ser forte e destemido. (Não quero admitir que ele fosse apenas peludo.) Nem Calisto nem Merlin existiram de fato. Como também não existe nenhuma ursa ou ninfa entre as estrelas. Mas claro que nós precisamos de fantasias, ou a vida perde a graça. Vamos continuar.

Podemos tentar o mesmo procedimento com o Cruzeiro do Sul, tornando-o facilmente um guarda-sol ou uma pipa, por exemplo, tendo como base a mesma constelação que inspirou os navegadores europeus, que primeiro a denominaram. Nossos ancestrais conquistadores podiam de fato acreditar que a imagem de uma cruz brilhava fixa nos céus, como se houvesse sido instalada ali, só para nos deslumbrar. Mas a cruz devia significar algo mais do que isso, do contrário não faria muito sentido que uma religião escolhesse como emblema um instrumento de tortura. É um símbolo muito antigo, uma das formas mais simples de serem desenhadas, e suas origens remontam aos povos nômades das estepes da Ásia Central e da região de Altai, na Rússia. Também não seria justo que só os povos do hemisfério sul tivessem o privilégio dessa visão – por que não os do norte, que eram cristãos? O Cruzeiro do Sul (Crux Australis), como seu próprio nome indica, é uma constelação austral, não boreal. E como nos jogos infantis em que se propõe unir os pontos com traços simples, podemos escolher qualquer forma que nos convenha, em um céu estrelado – com a diferença de que, nos joguinhos, há apenas uma resposta certa, indicada pela sequência de números.

Hoje sabemos que todos os corpos celestes se movimentam. Que as galáxias estão em constante viagem pelo espaço – como já anunciado acima, sem muito entusiasmo. (Mesmo agora, com o giro do planeta sobre si mesmo, estamos viajando a cerca de 1700 km/h, bastando dividir a circunferência da Terra por 24 horas.) Sabemos também que as estrelas que vemos hoje são imagens do passado. As constelações que veremos esta noite e as formas que encontramos nelas não configurariam o mesmo arranjo, milhões de anos atrás. Por exemplo, no que chamamos vulgarmente tempo dos dinossauros, veríamos no céu outras constelações e outras formas. E naturalmente as associaríamos com algo que conhecêssemos previamente, nunca com uma geladeira ou com uma bicicleta, que não existiam ainda. Pois não há como confirmar sua forma definitiva. Não existem desenhos no céu.

O grego Demóstenes escreveu que “estamos sempre inclinados a acreditar naquilo que desejamos.” Podemos visualizar, entre as opções da noite clara e com a ajuda de nossa prodigiosa imaginação, um caçador ou uma virgem (mas como podemos, afinal, saber que se trata de uma virgem?) ou um carneiro ou um cavalo alado. Tudo isso é criativo e maravilhoso. Mas a razão é o outro lado da moeda.

Calculando a trajetória das estrelas que formam as constelações, temos uma imagem bem diversa da que podemos observar atualmente. Uma simulação feita em computador mostra a posição em que estarão dispostas as estrelas da constelação de Leão daqui a um milhão de anos. Do ponto de vista dos terráqueos, ela terá a forma semelhante à de uma fruteira ou de um radiotelescópio. E você dirá: “Meu signo? Radiotelescópio. Pois é, eu tenho essa capacidade, essa percepção, eu capto os sentimentos e a energia das pessoas.”. Leão? Não haverá mais nenhum leão por ali. E como nos lembra o astrônomo Carl Sagan, em seu monumental Cosmos, provavelmente daqui a um milhão de anos, ninguém saberá o que foi um radiotelescópio. Fico pensando em quantas pessoas, desde Ptolomeu, se beneficiaram com a sorte de serem nascidas sob o signo de Leão, incorporando essa ideia à sua autoestima. No futuro, encontrarão outras associações, outras formas que lhes sejam convenientes, assim como para alguns de nós, ainda hoje, é conveniente acreditar em horóscopos.

De qualquer forma (ou com qualquer forma), mesmo que não estivesse escrito (ou desenhado) nas estrelas, não deixa de ser fascinante a constatação de que podemos pensar, imaginar, fantasiar, tendo como cenário de fundo o próprio universo que nos formou. O conhecimento desse processo extraordinário foi o que inspirou os cosmologistas a nos definirem, muito apropriadamente, como filhos das estrelas. Tudo indica que vamos continuar nos encantando com o que nos oferece esse gigantesco berçário cósmico, a vasta noite iluminada. Vamos para fora, sorrir às estrelas, nossas ancestrais silenciosas. Hoje a noite promete.

O nome do semideus Arcas originou o topônimo Arcádia, região no sul da Grécia, que, por sua vez, inspirou o nome Arcadismo, movimento artístico do século 18.

(O tema desenvolvido acima integra a palestra Veja de novo: relações entre textos visuais e narrativos, apresentada recentemente.)

Leia mais sobre descobertas e coisas que precisamos ver de novo:  A Lua não era outra

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Comentários

7 respostas para “Caçadores e virgens entre as estrelas”

  1. Avatar de saura

    QUANTO MAIS ACREDITO MENOS CREIO! a verdade que acreditamos hoje
    amanhã será fantasia, mas como vc mesmo disse:
    -Mas claro que nós precisamos de fantasias ou a vida perde a graça, não é mesmo?
    -Sem dúvida vamos continuar nos encantando com o que nos oferece esse gigantesco berçário cósmico, a vasta noite iluminada. Vamos para fora, sorrir às estrelas, nossas ancestrais silenciosas. Hoje a noite promete.

    aplausos, sempre Perce
    sua fã

  2. Avatar de larissa helen
    larissa helen

    amei a analise profunda
    respeitando e questionando a crença q nos cerca fascinante num tema tao atual

  3. Avatar de Amanda Carla Pedroso
    Amanda Carla Pedroso

    Sem sombra de dúvidas é perfeito….

  4. Avatar de ERIVELTON

    Com certeza que a vida seria muito mais chata, se não fosse pelos sonhos e pelo que a nossa imaginação cria. As fantasias devem ser uma necessidade humana instintiva, eu acho.

    Hoje em dia só com muita imaginação e caçando nas estrelas pra achar uma virgem! hahahahaha!

  5. Avatar de Jady Alves

    Com certeza cada fantasia realizada ou não estaria “escrita nas estrelas”, porque eu desejo que esteja… O que seria de nós seres humanos sem os sonhos? Estou amando a série Perce, mitologia é um tema mágico e somos pura magia porque não rss bjsss

  6. Avatar de

    Incrível….

  7. […] com bom humor e como algo que sirva a nos divertir no cotidiano, embora haja também defensores de conceitos aparentemente sérios envolvendo relações zodiacais, mapas astrais e outros filhotes dos horoscopistas mais […]

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