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Arranjo para impedir Ana Lúcia
Nossa filha sem sombras, a vida futura.
Solte essa arma. Não faça isso. Não faça isso, Ana, não há destinos para todos nós. Não há destinos suficientes para todos nós. De tempos em tempos, tornamos a nos perguntar se há algum verdadeiro motivo para irmos a qualquer lugar ou para não irmos a lugar algum. Ou se há um motivo, ao menos, para fazermos tudo o que fazemos. E se são boas ou não a nossa razão e a nossa crença. Veja o que aconteceu com meu amigo Val: o avião espatifou-se no ar, num instante. Todos eles iam para algum lugar. Mas não há destinos suficientes. E minhas memórias já estão se esgotando. O jovem escritor não existe mais, eu o fiz apodrecer para sempre em mim mesmo. Não deixe que seu sorriso apodreça em vida, não faça isso por sua vontade. Jogue fora essa arma, jogue-a para bem longe. Esqueça isso. Por que antecipar as trevas? Esqueça isso, de uma vez. O planeta gira enquanto não nos decidimos, enquanto decidimos também, enquanto sofremos por tão pouco. Essa música, você diz? Você amava essa música. O que podemos, de qualquer maneira, só o que podemos de fato, é sermos assim como somos, intensamente. Conviver com nossos sentimentos todos, intensamente. Conhecer nossa verdadeira natureza, intensamente. Ninguém vai nos chamar para brincar, eu sei. Mas temos que brincar por nossa própria conta até o último grito. Até o último fôlego. Até o último sorriso cansado, cansados de nós mesmos. Por isso ainda guardo as suas conchas, o seu presente de amor. Ainda guardo a menina gritando ao mar. Olhe para todas as estrelas e não pense nos nomes delas. Olhe para elas, apenas, intensamente. Olhe para mim, intensamente. Jogue fora essa arma escura, suma com ela. Isso mesmo. Não torne a segurá-la outra vez, entre os dedos. O tempo já foge entre nossos dedos. Já faz apodrecer nossos dedos, apagando cada um de nossos gestos. Não acrescente destinos quando já não há destinos suficientes. Você amava essa música, lembra? Estamos mais próximos agora, e não há deuses que nos protejam. Talvez uma palavra a mais, um gesto a menos, e uma criança poderá continuar por nós, sem medo. Sua filha, Ana, você sabe. Nossa filha sem sombras, a vida futura. Algumas coisas podemos entender, outras não. Não me peça para explicar o mundo, eu não posso. É isso. É só isso, Ana. Não tenho mais nada. Me abrace agora. Tente não chorar.
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Verne se levanta, apanha o casaco. Começa a vesti-lo.
“É isso então, meu velho. A gente se vê. Vamos marcar outro desses.”
“Vamos sim.”
Abraçam-se com vontade de estender a conversa. Mas Verne tem seus horários, precisa ir. É a primeira vez que presencia isto: Verne indo embora, enquanto ele fica. Que o vê se levantando e se retirando antes dos outros. Porque Verne acompanhava todos até o fim, sempre. Tinha carência de nossa companhia. Precisava mais de nós do que nós dele. Ele precisava de nós porque… Será mesmo? Será mesmo que não fomos sempre nós que precisamos dele e nunca demos por isso?
“Gostei do que você está fazendo. Queria ver esse livro pronto. E, olha, você garantiu que não ia pôr meu nome nele, lembra?”
“Eu juro. Vou usar outro nome. Já pensei nisso, é sério. Vou chamar você de Verne.”
“Ahah… O quê? Verne? Será que é o Júlio Verne?”
“Não. Não é não. Um dia eu conto.”
Verne pega os papéis da mesa, dá uma última olhada neles.
“Fica com eles. Eu imprimo outros.”
“Ahahah… Você, o homem da máquina de escrever… Sinal dos tempos, não é?” Dobra com cuidado os tais papéis, guarda-os em um bolso interno do casaco grosso, de cor creme. “Quer saber? Não deixa a Liana ler isso por enquanto.”
“Não…?”, Danilo, intrigado. “Bom, eu não… Certo. Acho que… vou fazer isso.”
“Marcou meu e-mail?”
E pensar que Danilo tinha pena de ingênuos como o Verne, que se abrem, se confessam, até dizem que amam. Hoje silencia surpreso, frente a esses sinais de amadurecimento dele. Hoje atento aos conselhos dele, secretamente. Promete enviar-lhe tudo. O resto do texto. Combinam outros chopes, outras conversas. Mas Danilo tem certeza de que uma coisa não mudou: Verne ainda parece ser aquele jovem capaz de dizer que ama, algo que ele próprio receia dizer a Liana, como receou outras mil vezes, em mil situações diversas, com algumas outras. Verne é capaz de dizer que ama. Não por ingenuidade. Mas porque é um homem forte, que poucos conhecem, e por isso julgam imprudente. Porque é um anjo de imperceptível coragem.
Marcas de gentis predadores – Guia de leitura
52. O endereço real – sequência
50. Papéis para Verne – anterior
Imagem: Edvard Munch. Remorso (Ashes). 1894.
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Comentários
2 respostas para “Arranjo para impedir Ana Lúcia”
Adoro drama! Ótimo como sempre, com detalhes muito ricos…;)
abraçoMaravilhoso…
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