Office in a Small City por Edward Hopper

Eu, datilógrafo

Pedem café. Pão de queijo. Compram o jornal com moedinhas.
Todos os ruídos o alcançam. Todos os sonhos.

Desde que pressionou, canhestramente, as primeiras teclas daquela antiga máquina de escrever… Bem, podemos tentar outra coisa. Essas nostalgias não podem salvá-lo agora.

Decide tentar recolher os livros. Levá-los de volta para casa. Fazer calar A canção de pedra. Desistir da divulgação. Pensar em alguma maneira de corrigi-los sem ter que pagar por uma nova edição. Vai dar muito trabalho pegá-los todos de volta. Mas é preciso. As pessoas teriam de compreender isso, com um pouco de paciência, e conferir folhetos com erratas enfiados nas páginas correspondentes. Isso parece ser uma solução. Imprimirá só os folhetos. Claro, isso fica mais em conta, mais razoável e… – não, certamente ele não tem noção de seu próprio delírio. Por sorte, isso dura pouco.

Pouco mesmo, e ele já descartou também a ideia de publicar o cuidadoso posfácio. Está tomando aversão, para não dizer horror, a palavras como posfácio. Também a palavras como prefácio, preâmbulo, prólogo, exórdio… Não irá mais comentar os textos, nem apontar os erros, nem justificar os seus motivos, não irá mais explicar coisa nenhuma de porra nenhuma a ninguém. Passa a admirar os autores que não ficam fazendo prefácios e posfácios e caralhácios, explicando e acrescentando, como se o texto não pudesse falar por si só, como se fosse preciso criar pretextos e artifícios para apresentar um livro chato atrás do outro. E ele próprio, até onde iria com essa maldita cancioneta pétrea? Em pouco tempo, tudo ali lhe soava mágico, místico e idiota. Ele estava perdido na floresta enevoada e envenenada do Romantismo.

Impressiona-se com o fato de que essa sua aversão aos seus próprios contos tenha se dado em tão pouco tempo, que isso fosse tão súbito em si mesmo, como se de alguma maneira quebrasse um cristal – argh, quase uma careta: prometera livrar-se de palavras e expressões assim. Uns meses atrás, pagaria uma empresa para distribuir seu livreco romântico; hoje, pagaria um bandido para destruí-lo. Que vida.

Reunidos na casa de um dos colegas, esses meninos de doze anos sofrem porque precisam abrir mão do desenho animado da tarde para estudar e, pior, terminar aí mesmo um texto escrito, passado a limpo, datilografado. Trabalho em grupo – é também o título em maiúsculas, sublinhado com caneta vermelha, três traços. Você lê a enciclopédia e dita. Eu copio, faço o rascunho. Você resume. Eu recorto a revista. E você… – ele não tira os olhos daquela máquina alta e escura, que já é antiga mesmo para essa época. “Eu posso datilografar.”

Não sabe datilografar. Nunca fez isso. Geralmente é ele o encarregado do resumo. Ou da pesquisa. Esses caras me exploram mesmo, depois eu tenho que desenhar até a capa do trabalho enquanto eles disfarçam, fingindo-se muito ocupados com algum detalhe, que patifes! – palavras que manipula em sonho, absorvidas de histórias em quadrinhos e seriados ordinários. Dessa vez ele toma a frente, que a máquina o atrai além da curiosidade, parece significar uma perspectiva formidável de se escreverem livros, como se a ferramenta fosse o mais importante, não o seu usuário.

“Posso começar? Primeira parte…”

Com doze anos, tecla pela primeira vez umas letras nesse engenho fascinante e feio, uma tarde qualquer, a casa desse colega que nunca mais encontrará no transcurso da vida. É difícil rastrear os tipos, tão fora de ordem. Bem, estávamos falando da máquina, não é mesmo? Voltando. É difícil rastrear os tipos, tão fora de ordem, cada letra, em sua posição, firmando-se pouco a pouco na memória. Uma a uma. Erros. Que fazer? Parece impossível não errar, mesmo com todo, mas todo cuidado. Não importa. Tectec, tect, plim! As palavras prontas, impressas no papel, são mágicas.

Essa imagem lhe volta, quase num susto, ao ler a notícia sobre o novo escritor laureado. Jornal exposto em meio à confusão ruidosa da Rodoviária Velha, na rua de mão dupla dos Campos Elíseos. Está com um amigo, tinham passado a noite com duas putas tão jovens quanto eles, e amanhecem com o dia, depois de terem deixado as meninas em um ponto de ônibus próximo. O amigo também escreve poemas – são dois invencíveis defensores da literatura e da inteligência, e só toleram essas mulheres vulgares por motivos óbvios. Ali está o premiado do ano, o velho William Golding. Eles o admiram pelos personagens dos meninos náufragos, claro que se sentem como alguns deles. A foto de Golding não parece dizer-lhes muito. Na verdade, passa-lhes alguma tristeza mesclada àquela manhã cansada, algum ranço nublado e deprimente, com a impressão de uns corpos femininos na memória de um prazer extinto, esses prazeres e esforços recentes dando lugar a sinais de arrependimento (o que sempre acontece com eles), inclusive lamentando-se o dinheiro desperdiçado com aquilo.

Mas ele se lembra com delícia, com uma forte memória física, com aquela salivação especial, dessa sua menina, uma moreninha baixa e sorridente, com umas botinhas que manteve calçadas até o último estágio de sua nudez – enquanto a de seu amigo usava umas sandálias altas, verdes, que ele, muito entendido, julgou de péssimo gosto. Só isso o fazia sentir-se ligeiramente privilegiado com relação ao outro, em segredo, mas de fato. Mesmo enquanto saboreia em silêncio essas pequenas vantagens, fazendo-se um vencedor entre picuinhas, supõe que não poderá haver melhor exemplo de competição infantiloide, pobre e mesquinha, compensando outras ridículas perdas suas, essas sim, mais profundas.

Ele imagina suas memórias, muito tempo à frente, velhinho, sem poder se levantar da cadeira de rodas, mas sorrindo às câmeras, vejam que lição de vida. Seu último livro, contando tudo, chama-se Eu, datilógrafo. Título-plágio do Eu, robô, de Asimov, mas significando, modestamente, que um escritor de seu porte, após tanto viver e produzir obras monumentais, considera-se apenas… um datilógrafo. Mas claro que, ao melhor estilo de Asimov, trata-se, no momento, de uma projeção fundamentada nas possibilidades do presente, uma ficção potencialmente realizável, uma visão de futuro, entenda-se. Datilografia – no futuro.

Bem, no momento é preciso respeitar o romancista laureado, isso é que é obrigatório, quase sagrado, precisam conhecer detalhes de sua biografia e de seus trabalhos menores e… Ao mesmo tempo, essa figura na foto inspira algo pitoresco, quase cômico, pois o velho William se parece com muitos de seus professores barbudos, um de Química, outro de Física, ah sim, aquele de Geografia, lembra? Enfim… E parece silencioso, tranquilo, um simulacro de Darwin retirando-se após a divulgação, com o irrefreável estopim aceso, de sua pequena grande bomba. Mas não se trata de uma bomba: Golding é principalmente um acadêmico cuidadoso. Portanto, esses dois poetas estreantes consideram, cada um por sua conta, algo sobre os caminhos que podem levá-los um dia à Suécia. Ser como Golding? Como García Márquez? Beckett? Albert Camus? Uma variedade tão grande de biografias, personalidades e obras distintas, que não é possível encontrar um padrão. Desse jeito, nunca chegarão ao Nobel, embora sempre se digam que esse aí, do jornal de hoje, o grande premiado, foi um dia tão desconhecido e jovem como eles, portanto, afinal, por que não um de nós, não é mesmo? Mas (ai, ai…) eles aí, nessa rodoviária imunda, de chão escuro e ar engordurado, sem projetos definidos, passando a noite com putinhas pobres, enquanto esses ilustres literatos estudam sem parar… “Sai da frente, olha o pacote!”, grita o carregador, empurrando um carrinho escuro, de duas rodas, mal engraxado, nem de longe desconfiando que esbarra em dois potenciais da cultura literária ocidental, mas que bronco.

Pedem café. Pão de queijo. Compram o jornal com moedinhas. Em meio a tudo isso, esse confiante poeta ainda se lembra com agradável prazer da gata de botas, sentadinha sobre seu pau duro, dando-lhe as coxas e a bundinha boa a serem tocadas, apalpadas, apertadas, tudo isso muito, muito gostosamente. Sorve de olhos fechados outro gole do café forte. Todos os ruídos o alcançam. Todos os sonhos. Quando for receber o Nobel, haverá de chocar a todos com a verdade de seu surpreendente discurso, que fará deslocar a notícia dos suplementos literários para as primeiras páginas do mundo: “Senhores! Não tenho nenhuma vergonha de declarar aqui, publicamente, que a mulher que mais me deu prazer na vida não gostava de livros!”.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

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6. Uma das mil noites – anterior

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