Office in a Small City por Edward Hopper

Autorretrato 23 (curta-metragem)

O personagem casualmente compreende que sua modelo involuntária é a mesma pessoa a quem algumas inscrições nas pedras litorâneas se referiam, com isso descobrindo seu nome.

Há algum tempo tive a grata satisfação de ver um de meus contos adaptados à tela por Bruno Garavello, que roteirizou e dirigiu o curta-metragem Autorretrato 23. Dias atrás, para minha surpresa, Bruno gentilmente me enviou o vídeo, disponibilizado na rede.

No conto, um jovem desenhista, que costuma jogar xadrez com um amigo mais velho, ouve dele o conselho para que não se envolva com mulheres, que se dedique apenas à consolidação de sua arte, pois com ele o envolvimento amoroso resultou em divórcio e frustrações. Mas, sem que fosse sua intenção, o artista se vê cada vez mais suscetível aos encantos de uma jovem misteriosa, hospedada em sua mesma colônia de férias, a quem pretendia apenas retratar secretamente.

O trecho a seguir revela o momento em que o personagem casualmente compreende que sua modelo involuntária é a mesma pessoa a quem algumas inscrições nas pedras litorâneas se referiam, com isso descobrindo seu nome.

A manhã muito clara dissipou, como a fina lâmina de espuma, o sonho de areia. A claridade intensa facilitava-me definir os traços de meu modelo. Conhecia cada linha e músculo de seu corpo, até seu andar tornava-se, aos poucos, especial para mim. Ágil mas indolente. Fria mas pulsante. Que fazia essa corça junto ao mar? Copiei sua maneira de ajoelhar-se, de inclinar-se na areia. De soltar e prender os cabelos. De observar os próprios pés, os seios e as nádegas, torcendo-se sobre si mesma. Por mais que me esforçasse em transcrever seu rosto, algo o fazia outro no papel, escapava-me. Faltava-lhe o sorriso, como se nunca sorrisse. Os olhos lânguidos mas aguçados traziam outra adolescência e iniciação: seu rosto tornava-se sempre mais meu rosto, e tudo se parecia com ele. Voltei-me surpreso, um impulso, vê-la outra vez, o exato momento (alguém a chamava) em que erguia a cabeça, cabelos num rabo de cavalo, lábios semicerrados como se no instante seguinte fosse responder à voz nem masculina nem feminina que a desejava a distância: “Vem para o barco, Cissa! O barco! Vamos velejar!”

Meu modelo corria para o barco. Minha figura em carne e sol. Minha inspiração rumo ao mar. Vela vermelha perdendo-se dos homens. Meu destino.

A essa altura, o envolvimento desse personagem com a jovem desconhecida já não pode mais ser ignorado.

Cissa não me ataca com o bispo. Emerge do mar. Cabelos mais claros seguindo as linhas do pescoço, perdendo-se nas costas. Retoma a faixa de areia em minha direção. Não sorri. O maiô cor de sangue expõe suas virilhas, a cor do abismo, amplia-lhe as coxas e os flancos em movimento, o andar desafiador ignorando uns restos de onda que ainda lhe alcançam os pés e lhe emprestam sandálias de espuma. Uma brisa sopra a voz de Castro, menos metódica, ainda num misto de citação e neblina: se te deitasses, Stephen, com Cissa sob o mesmo sol, talvez pudesses sentir, por um instante de febre, o que te arrebata e te move ao centro da vida.

Cissa prefere o cavalo. Deixa o banho num vestido leve sob cujo tecido oscilam os seios intocáveis. Cabelos ainda úmidos e não escovados, fios grudando-se na testa e na garganta. Castro na brisa: se brincasses, Stephen, com Cissa nas ondas e te sentasses ao seu lado nas falésias e corresses com ela até onde repousam os barcos, talvez atinasses, num lapso de luz, com o que tanto busca, por toda parte, teu traço.

Cissa não sabe jogar xadrez. Atravessa a porta na penumbra, metade treva, metade lua, aproxima-se. Mais alta em sapatos de noite, vestido negro colado ao corpo, cabelos presos. O que lhe cabe de estrelas divide-se entre o par de olhos e o par de brincos. Se tomasses, Stephen, Cissa pela cintura e a levasses sob a lua dos verões litorâneos, talvez encontrasses, entre um meteoro e um relâmpago, o que ainda obscuramente pressentes por trás de tudo.

Autorretrato 23 é um dos contos de Lisette Maris em seu endereço de inverno.

Clique aqui para acessar o canal de Bruno Garavello no You Tube.

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Comentários

2 respostas para “Autorretrato 23 (curta-metragem)”

  1. Avatar de Cleber

    Fantástico, muito bom… parabéns e abraço
    Cleber

  2. Avatar de Bruno

    Caro Perce,

    Não há como esconder meu sorriso ao ler sua sintaxe tão gostosa e cheia de enigmas.
    Fiquei muito feliz quando vi, pela primeira vez, o curta Autorretrato 23 pronto e acredito que seja um trabalho muito íntimo do nosso grupo. A emoção e o espanto pode ser comparável a minha primeira leitura do texto.

    Fico feliz porque grandes diretores como Copolla em The cotton club e the Godfather mais Stanley Kubrick em 2001 prezam pela boa adaptação literária – o primeiro escreve ao lado de W kennedy e Mario Puzzo, o segundo com Arthur C. Clarke – e nos seduzem para tentar fazer o mesmo.

    Agradeço a cessão desta obra plural, envolvente e de cunho existencial que me intriga desde sempre e me permitiu realizar um trabalho que, a despeito dos problemas, me encanta.

    Abraço
    Bruno Garavello

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