Office in a Small City por Edward Hopper

O azul-âmbar do dia seguinte

Perco-me entre os noctívagos, não mais procuro a garota solitária. Não a desejo nem a afasto.
Nada espero de tais solidões e também acredito que o mais não se comunique.

Arranjar quadros em uma parede, expor tuas preferências e até mesmo teus desejos, é desnudar-se ao visitante ou fingir que és como ele, ou fingir sobre ti mesmo, mentir ostensivamente com a aprovação e o aplauso de todos, como fazem os artistas.

Ciprestes escuros ou azuis, difícil dizer. Agitam-se com a ventania. Penso captar seus movimentos, mas estranhamente é também uma densa imobilidade o que equilibra sua fúria de labaredas, sua ondulação em busca de uma inércia maior. Tanto quanto o cometa mal pintado na parede escandalosa do bar escurecido, parecem os ciprestes prontos a incinerar a moldura ou arranhar as paredes. Enfio outra vez a cabeça no travesseiro, como a sufocar-me no escuro.

Melhor seria deixar a parede nua, intocada, sem um prego, um sinal que aludisse à exposição. Mas essa parede seria, do mesmo modo, uma manifestação do ego do morador. Menos pior.

Preciso de ar. Resisto ainda, o que faz piorar minha cefaleia crescente.

A cor da parede, desde que escolhida pelo mesmo morador, revelaria suas preferências ou sua hipocrisia, pois é possível que a tenha mandado pintar assim, tal qual se usa na vizinhança ou como se ensina nas telenovelas. Mas talvez fizesse ali um risco violento com carvão, declarando assim sua posição adversa, inconformada – e desnudando-se novamente. Mais tarde imaginaria, à medida que sua ira se atenuasse com o auxílio da maturidade, das rugas e das tosses mais frequentes, uma série de grafites coloridos e os disporia segundo seu gosto. E sempre a parede o denunciaria, o coração de Poe, sempre haveria um pequeno prego, um dedo apontando a incompleta criatura que ali habitasse, incompleta comprovadamente, pois necessitaria, como muitos, da cumplicidade da arte.

Ar. Volto-me à parede, emergindo do estranho travesseiro. A esquina de Hopper. Julgo haver fechado os olhos outra vez, a escuridão tem os matizes dessas fachadas noturnas, mal iluminadas pelas lâmpadas frágeis dos homens. Uma loira esguia, elegante mas muito pálida, aproxima-se como se me dissesse sem olhos: você também está sozinho? E passa por mim. Eis-me aqui. A cidade, melhor iluminada em dezembro, na noite em que me engasguei com um doce, e meus pais tiveram de socorrer-me às pressas. Voltarei um dia para recordar minha desastrosa infância e o dia em que voltei para recordar isso. Perco-me entre os noctívagos, não mais procuro a garota solitária. Não a desejo nem a afasto. Nada espero de tais solidões, e também acredito que o mais não se comunique. Mas até quando poderei disfarçar-me? Tenho resistido, se bem me lembro, a todas as chamadas da normalidade, às amantes fortuitas, mesmo às possíveis companheiras, além de perspectivas profissionais e… Profissionais, eu disse. Bem, bem. Meu bom humor está voltando. Ainda é só um sinal. Um inseto voejando em círculos ante as gigantescas fachadas de Edward Hopper.

Agora sim, as paredes. A sala. Que lugar é este? Hopper ganhou um canto à esquerda. Klimt em um de seus momentos mais sensuais. Klee, talvez – muito sugestivo no estado em que me encontro. Vincent teve seus ciprestes junto à janela. Por sorte, nenhum Mondrian. Mas, de olhos fechados, eu via, como iluminadas por estranhas fosforescências e fogos de artifício, assimetrias semelhantes aos confusos retratos de Pablo Picasso e aos bicharocos que preenchem os espaços nas telas horrorosas de Joan Miró. Tilintar de xícaras, delicados talheres. Pensei haver discernido algo mais nos ciprestes, as xícaras se aproximam. Fecho os olhos, volto a esquadrinhar suas curvas turbulentas que de certa forma lembram… Torno a sufocar-me no travesseiro. Por favor, nada de escorpiões.

“Ah, está acordado?”, voz de quem acabava de flagrar-me o último gesto.

Sentei-me como pude, envergonhado. Já era hora de eu saber o que estava acontecendo.

“Você ficou realmente mal”, ela sorrindo. Ou rindo, acho. Instalou-se na poltrona após passar-me a xícara que quase deixei cair. A blusa larga de inverno, preta sobre a camisa também escura, fazia mais claro e fulgurante seu rosto. Calça justa de malha, meias grossas, de lã, tornando seus pés arredondados sobre o carpete.

“Toma. Bebe. Você vai se sentir melhor.”

Minhas têmporas pareciam de chumbo, não me ocorriam comparações menos gastas. Baixei os olhos ao líquido âmbar, fumegante, e vi… (Eu estava sempre vendo alguma coisa, o iluminado. Um santo.) Vi o intenso cometa da noite anterior, logo trazendo o primeiro girassol de fogo, Bruno e as meninas que… Quem eram?

“Lembra de mim?”

“Claro. A que… Você… Minha cabeça: quer virar do avesso.”

“Você foi mesmo além da conta.”

“Me desculpe a cena de ontem. E… E… ”

“Bebe devagar. Você vai se sentir melhor.”

Bebi. Não me senti melhor. Pensei que minha careta pudesse assustá-la, mas pelo jeito ela não se impressionava com pouco.

“O que é isto?”

“Um nome complicado, uma longa história. Mas pode ficar certo de que é bem apropriado para suas dores. Aliás, só uso produtos naturais, homeopáticos.”

Foi o que ela disse. Nada de químicas artificiais ou alquimias fora de seu alcance. Sorvi outro gole, bravamente.

“Nada disso nos salvará. Se é que me entende.”

“Sei. Você é poeta.”

“Pode rir. E você, é artista?”

“Pode rir também. Não sou.”

Rimos. Nada disso nos salvaria. Que diabos estava eu fazendo ali? O que tinha aquela garota com os ciprestes?

“Pareço uma artista, é?”

“Seus quadros… Também gosto.”

“Ah, os quadros. Obrigada.”

“Sei discernir dessas sombras alguma relação com a beleza, acredite.”

“Não duvido.”

“Por que os ciprestes perto da janela?”

Ela voltou-se aos quadros. Pensou antes de responder. Com algum esforço, eu segurava a xícara com as duas mãos.

“Poderia ser aquele, talvez. Mas acho que Hopper é parte da solidão que registra, é… uma de suas figuras noturnas. Mas os ciprestes… Os ciprestes…”

“Os ciprestes…?”

“Uma espécie de incêndio… Eles não se contêm e…”

Nada de escorpiões. Nada de escorpiões.

“Parecem buscar ansiosamente mais luz. Não acha? E sendo uma árvore associada a cemitérios…”

Sorvi outro gole. Bravamente. Ela parecia estar pensando ainda.

“É notável”, ela por fim e agora com novo ânimo, “que artistas de origem sombria, como Vincent van Gogh, tenham evoluído das trevas para a luz, descendo de uma Holanda cinzenta para os campos ensolarados do sul da França. Que tenham buscado tão intensamente a vida. Não acha?”

Parei de beber. Olhei para ela.

“Van Gogh suicidou-se.”

Ela moveu os olhos, deixando os ciprestes. Estendeu a xícara, alcançando a mesinha de centro, e voltou-se em minha direção.

“Mas só depois de haver encontrado sua luz.”

Encontrado sua luz, ora vamos. A ingenuidade é linda. Perdidos em palavras outra vez.

“Vamos deixar disso”, eu olhando ao redor, depois à janela. “Ou nós mesmos não encontraremos luz que nos sirva.” Ia dizer: que nos salve. Oh, deuses, oh, minha cabeça! “Mas vamos… Vamos deixar disso.”

Ela passou o dedo pelo lábio inferior, um gesto que eu também costumava fazer.

“Há muito tempo escreve poesia?”

Bem, um duelo à altura. Não era intencional.

“Desculpe. Estou sendo agressivo, como sempre. O quadro é muito interessante.”

“Van Gogh é sempre interessante. O quadro é genial.”

Concordei com a cabeça, enquanto heroicamente sorvia outro gole daquele âmbar cor de chá. Também eu, quando não estou disposto a discorrer sobre alguma obra de arte, digo logo que é genial, para encerrar o assunto. Mais uma vez, tive a chance de dizer isso.

“Desculpe, qual é mesmo o seu nome?”

“Estela. E o seu?”

 Do romance  Os últimos dias de agosto. Estela aparece pela primeira vez no bar de motivos siderais, mas Júlio não a notara, não a vira de fato, tendo apenas sido resgatado por ela quando não tinha mais condições de controlar seu estado de embriaguez. A partir desse episódio, todas as aparições dessa personagem são associadas às manhãs ou ao dia claro.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

89. Não diga! Eu também… – sequência

87. Só ela sabia – anterior

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Imagem: Edward Hopper. Noctívagos. 1942.

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Comentários

3 respostas para “O azul-âmbar do dia seguinte”

  1. Avatar de Carmen Regina Dias

    Chegando aqui e ficando pasma. Era tudo que eu desejaria encontrar a
    essa altura do campeonato!

    Senza parole.
    Chegando e ficando, nobre autor.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Carmen, muito obrigado, fico contente que tenha gostado.

  2. Avatar de Veruska

    Em meio ao balanço financeiro de fim de ano,fiz um pausa para ler o trecho de seu conto.Foi um belo intervalo do dia comum, pois me transportei não sei para onde, sentindo uma leveza apaziguadora e azul que tomei emprstado da sensação registrada em seu texto.
    Obrigada

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