Office in a Small City por Edward Hopper

Dia após dia

O dia é um globo que gira, um cilindro fechado, uma espada que cai.
Um dente que devora o que, de nossa parte, nunca mais será o mesmo.

Ainda que tentasse evitar – o que nunca faço –, as ruas costumavam cercar-me de cenas avulsas, frases ouvidas por acaso, pessoas em movimento protagonizando os dias, todos os dias antes que viessem outros, outros dias, outro tempo, outras gentes. Poucos dentre nós sabem que o dia é um globo que gira, um cilindro fechado, uma espada que cai, um dente que devora o que, de nossa parte, nunca mais será o mesmo. Descobrir o óbvio é sempre mais difícil. Eu assimilava a diversidade de tipos, suas roupas, cortes de cabelo, as religiões que os acalmavam, que os poupavam de desafiar o infinito e a razão da vida, as vozes e ruídos que produziam sob o sol, tão destoantes do silêncio onde o universo trama sua treva. Gente no meio da vida, a cada um seu passado, idioma e ideologia; a cada um seu futuro, o apodrecimento de tudo em que creem. Posso dizer mais, gosto de discorrer sobre isso. Mas considero muito inquietante e belo o que as palavras não dizem.

Olhei pela janela o movimento lá embaixo, o dia que se iniciava. Um plano econômico, um decreto, um jogo de futebol, a morte de uma celebridade… De certa forma, nos apossamos dos eventos. De certa forma, os perdemos. Com o tempo, nos afastamos de sua singularidade e só assimilamos sua tediosa repetição. E eles vão se desvanecendo como as coisas concretas, os objetos e os prédios. As ruas são as mesmas, nem parece que algo mudou. Como pressentir a recessão, a carestia e as crises pela aparência das casas, das pessoas que passam? Quem sabe dos mais endividados, do desempregado e seu escasso pão, do suicida? Dia após dia.

A conspiração dos felizes (Vina entre os morcegos)

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Imagem: Tom Brown. Tráfego urbano, final da tarde.

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