Seu carrinho está vazio no momento!
Chegadas partidas
Isso quer dizer que também pode não acontecer.
Imaginei outras pessoas que vinham para a capital, cursar universidades, gerenciar negócios ou assumir cargos arranjados, e moravam, a princípio, com amigos ou parentes que os recebiam sem problemas. Com isso, podia rever também minha própria partida, anos atrás.
Ninguém fora despedir-se de mim na rodoviária. Nem era de se esperar, admito. Ainda assim, muito em segredo e contra o mais provável, até o último minuto, eu supunha que algo diferente pudesse acontecer. Sim, é estranho: são peças que a esperança nos prega – dela, sempre fica algum ranço desse especial veneno, próprio a criar outra precária ilusão, levando-nos um pouco mais adiante. (Dizem que, até o último dia de nossas vidas, tudo pode acontecer. Isso quer dizer, também, que esse tudo pode não acontecer.) Enfim, era mais de meia-noite. Na poltrona bem à minha frente, ia um rapaz cuja turma de amigos promovia uma algazarra do lado de fora, agitando-lhe beijos e sorrisos, com vozes embriagadas, desejando-lhe boa sorte entre muitas brincadeiras, palavrões toleráveis e obscenos votos de sucesso com futuras fêmeas, isso até que o ônibus partisse.
“Vamos morrer de saudades!”
“Vai com Deus!”
“Não esquece da gente, hein? Nós vamos te esperar…”
Eu sorria com o canto dos lábios, como nos tempos de escola, quando tinha de fingir estar participando de alegrias alheias. Fingia, dessa vez, para ninguém mais. Fingia que aquilo tudo era para mim.
“Escreve pra gente!”
“Eu amo você!”
Por acaso, ninguém ocupava a poltrona ao meu lado, e assim pude dormir com certo conforto durante boa parte da viagem. Sonhei com ruas estranhas, comerciais de televisão, minha mãe inexpressiva, um dos últimos heróis de minha infância em um esquife e outras imagens desencontradas, o que, de alguma forma, me ajudou a esquecer a distância e o tempo, principalmente esquecer a mim mesmo, que era do que mais eu precisava. Acordei sobressaltado, compreendendo imediatamente que me agitava dentro de um ônibus de viagem. Podia ouvir pessoas roncando, misturando seus ruídos de sono ao som monótono do motor. Inclinando-me para o outro lado, descerrei a cortina corrediça e esmaguei meu nariz no vidro, a fim de perscrutar a escuridão da paisagem lá fora. No mesmo trajeto por meio do qual, durante o dia, era possível observar uma paisagem que passava voando, que subia e se contraía, abria depressões profundas e tornava a emergir entre colinas intocáveis e mata nativa, eu podia ver apenas, quase que iluminados pela claridade veloz dos faróis do ônibus, uns postes que pareciam servir como sentinelas da noite e uns feixes contínuos de cabos elétricos apostando corrida. Eu não tinha relógio, mas podia avaliar o quanto dormira, e calculava que eram cerca de três horas. Fiquei olhando uma estreita faixa do acostamento, a estrada que não parava de passar, eu que não parava de pensar, e mergulhei meus olhos no negrume hostil que era a noite sem lua, refletindo sobre minha pequena oportunidade de emprego na capital, a idade em que me encontrava e o que eu havia sido até então, para onde afinal estava indo, ao lado de outros tantos passageiros que jamais conheceria. Por um momento, senti uma angústia muito intensa afogar-me o esôfago. E percebi que nunca antes estivera tão sozinho.
“Aaah!”
O grito, vindo do fundo escuro do ônibus, interrompeu-me o nascer de algumas lágrimas e fez acordarem alguns.
“Que foi?”, perguntou alguém.
“Sonhei que a gente estava caindo num buraco…”
Quando o ônibus chegou, já era manhã. Perdido entre o tumulto desordenado dos que desembarcavam, eu via pessoas abraçando-se nas plataformas, indo ao encontro de outras, também sorridentes, enquanto alguns aguardavam ainda, com ar ansioso, seus entes queridos, olhando através de mim e movendo a cabeça num gesto apreensivo de procura, como se o meu vulto incômodo lhes obstruísse a visão. Quando afinal subi ao patamar seguinte, descansei a mala no chão por um momento. Então, divisei a dimensão da cidade sem fim, perdendo-me em seus horizontes de neblina. Não pude evitar isso que alguns chamam de um nó na garganta. Algumas pessoas me esbarravam em sua pressa, habitual ou nova, e eu ouvia, a certa distância, as chamadas e os gritos desencontrados dos carregadores. Era uma manhã cinzenta. Caía uma chuva fina, silenciosa, sobre a capital.
“Olha aí o caminho!”, protestou um dos transportadores, já tropeçando em minha bagagem. E ainda resmungando aos que o acompanhavam: “Pensa que o tempo parou pra ele…”.
A metrópole significava para mim o desafio de enfrentar o inferno. Eu tinha em conta minha inexperiência, minha saúde frágil, minha inabilidade diante de inúmeras situações, meu salário precário. Para outros, tais viagens e mudanças chamavam-se oportunidades. Para mim, representava uma das piores coisas do mundo. O que eu mais desejava para o futuro, e que não podia ser medido em nenhuma escala, era poder sorrir de verdade.
“Sai da frente, retardado!”, outro deles, sem nenhuma educação.
Fiz o que pude para dar-lhe passagem, não pretendia incomodá-lo. Eu poderia abrir mão do espaço que ocupava, do tempo que não me servia para nada, do emprego que me esperava em alguma cela entre elevadores, de qualquer perspectiva que me iludisse, porque não conseguia ver nenhuma vantagem em ser bem-sucedido, em tornar-me o diretor de um escritório ou o campeão de vendas ou o presidente da República. Poderia deixar que todos passassem. E ficassem com tudo.
Enquanto eu subia as escadas rolantes na rodoviária, o velho despertador disparou dentro da mala. As pessoas mais próximas riam sem nenhuma piedade, outras procuravam, com o prazer do escárnio, a origem do ruído insistente, vergonhoso. Desnorteado, eu lhe acertava joelhadas, por fora da velha mochila disforme (que eu promovera a mala), mas não houve meio de fazê-lo parar, e o danado acabou esgotando a corda toda quando eu já me encontrava no metrô. Foi meu primeiro vexame memorável na capital. Em minha nova vida.
Lá fora, de pé em uma esquina, busquei no bolso o papel amarrotado, com o endereço da casa de pensão para onde iria em seguida. Mas era apenas o hábito, pois eu já o havia memorizado infinitamente. Visualizava futuros colegas de quarto, vizinhos, pessoas que eu não conhecia ainda, e com as quais teria de conviver. Senti algo muito forte paralisar-me os gestos. Nem tirei o papel do bolso. Fiquei parado ali mesmo, observando o movimento ao redor e pensando muito calmamente se valeria a pena continuar vivendo.
A conspiração dos felizes – Guia de leitura
39. O que Copérnico não imaginava: todos queriam ser o Sol – sequência
37. Restos de meu pequeno mundo perdido – anterior
Imagem: Robert Rauschenberg. Sem título (detalhe inferior). 1951.
por
Publicado em
Categorias:
Tags:
Leia também:
Comentários
7 respostas para “Chegadas partidas”
perê…gostei muito de “sua” chegada na capital! como escreve bem!!! fazia tempo que não lia nada seu…parabénss!!! chegadas partidas foi escrito em 2010..leio 3 anos depois e soa fresco demais!!! eita coisa boa!!!bj
Renata, “Chegadas partidas” é um trecho de “A conspiração dos felizes”, escrito em 1988. Todos os trechos do romance “Os últimos dias de agosto”, que publiquei em partes no blog são de meus 19 anos. Quando fiz 40, decidi parar de escrever e parei mesmo. Só há dois anos comecei a escrever um novo romance, “Marcas de gentis predadores”, que publiquei em capítulos aqui no blog.
https://www.percepolegatto.com.br/2011/02/05/mas-como-isso-comecou/
Eu fiz essa viagem também. Os sentimentos foram bem os mesmos amigo! Obrigado por exprimir isso por mim.
Te amo!Amigo escritor,
Este seu texto me fez lembrar vários que escrevi, pois a minha coletânea de textos se propõe a explorar examente o que eu acunho de “Paradeiro”, título do meu primeiro livro a ser publicado um dia aí. Acredito que a solidão e o estranhamento impresso em “Chegadas partidas” a maioria já vivenciou com alguma intensidade e superação (ou falta disso). Eu mesmo tive que viver tudo do seu texto e por isso meu veio como um balde de água fria, mas tão terno, dado o poder de sua escrita. Um abraço! Parabéns pelo bom texto…
Belo texto, Perce. Estás sumido lá do ateus. Percebi tua ausência, meu caro. Mande notícias. Aquele abraço
Perê, a sensação que eu tive é que essa viagem foi minha. Eu fiz cada um dos movimentos. As sensações foram sentidas por mim. Incrível o poder da literatura e o seu de se expressar. Bjos , amigo.
Amigo Perce Polegatto
Somente aqueles dotados de uma mente, sã e perfeita, para imaginar e transformar essa imaginação no dia a dia, daqueles que deslocam, numa viagem ficcionista, buscando novos rincões, novas vivencias. Seus contos não constituem surpresas, surpreendido ficaria se foram diferentes. Tenha certeza que dá enorme prazer em poder participar, mesmo mentalmente, de suas aventuras além desta nossa dimensão. Parabéns.
Comentar