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Meu colega triste
Pouco tempo no calendário, uma cicatriz na memória.
Mas eu era assim, analítico. Ou supunha ser. Observava tudo em meus colegas, naturalmente ou não. Certos dias houve em que me sentia tão aguçado, tão perfeitamente lúcido e desperto, que quase poderia apostar na iminência de alguma fulgurante revelação, em meio a um momento qualquer. Isso nunca aconteceu, claro. Só me ocorria comparar tal estado interior com um lapso de intensa vigília, como se visse, através de um vidro muito limpo, um pátio de árvores após a chuva, cada folha em sua extrema nitidez, como elaborada com a precisão da pena de um desenhista encantado.
Também não foi por causa desses dias de vidro que se gravaram em minha lembrança os tipos com quem convivi durante este ou aquele período. Meu colega alto e ruivo, dentição proeminente e orelhas destacadas. Minha colega morena, de nádegas inadequadamente largas para seu tamanho, ignorante e malcheirosa. Meu colega franzino, compleição débil, aparentando uma fragilidade imprópria à sobrevivência. Minha colega silenciosa, muito magra e desproporcional, como um estranho passarinho de braços finos e longos. Meu colega obeso, estudioso e humilde, conformado com sua condição. Minha colega de olhos grandes e rosto triangular, sorriso que parecia lhe ocupar toda a dimensão do rosto, satisfeita porque se acreditava bela – que entre gente de nosso meio dificilmente alguém se atrevia a considerar-se qualquer coisa menos patética do que ser bonito ou inteligente. Meu colega de olhos miúdos e lábios tensos, nunca relaxados, agressivo e rebelde, supondo-se injustiçado por algum motivo. Minha colega de rosto sério, baixa e sem cintura, enquanto não nos surpreendia com um de seus raros sorrisos amargos, como se nunca valesse a pena sorrir ou como se ela nos quisesse contar que havia sido enganada pela vida. Nenhum deles era, em minha opinião, mais feio do que eu. E quase me esquecia de meu colega triste, de quem quase nada sabíamos, porque ele havia deixado a escola logo após uns primeiros dias, tempo suficiente para o identificarmos como um semelhante, para nos assegurarmos de sua presença na sala de aula, para nos fazer pensar que talvez não houvesse no mundo um menino mais triste do que ele. Pouco tempo no calendário, uma cicatriz na memória: meu colega triste.
A conspiração dos felizes – Guia de leitura
27. Não fale grego assim comigo – sequência
25. Inexpressivo, impassível, sem graça – anterior
Imagem: Odilon Redon. O corvo. 1882.
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Comentários
4 respostas para “Meu colega triste”
Já há algum tempo que sigo o que escreve. Admiro muito a profundidade da sua escrita. Nos dias atuais existem muitos que escrevem, mas poucos o fazem com o talento que o Perce Polegatto o faz. Minha admiração!
Muito obrigado, Fernanda, é gratificante saber disso.
Lindo trecho, o livro todo tem essa profundidade, não se trata de moda, de tristezas normais da vida, de momentos da vida contados, é muito mais, é observar os detalhes que quase sempre somem em nossa vida, em torno.. a inutilidade de sofrimentos e alegrias.. o momento mínimo de felicidade, como na parte em que cantores cantam e tocam na rua, belo livro.
Eu lembrei do Rubem Alves. Ele fala muito sobre esta capacidade que vamos perdendo com o correr da vida: a capacidade de enxergarmos as coisas como elas realmente são. Essa coisa de ter olhos que realmente enxerguem. Lembra daquela página da mulher do divã, quando ela diz que achava que estava enlouquecendo porque depois de tantos anos cortando tomates (ou cebolas?) ela nunca tinha enxergado de fato o que estava cortando e nunca tinha visto nada tão surpreendente? O menino observava tudo, ali, muito quieto na carteira dele. Ele via os detalhes. Ele tinha olhos e enxergava. Tanto que o menino triste ficou pouco tempo na escola, mas marcou profundamente o menino observador.
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