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O misterioso Paul Celan
Sua poesia nos conta que sempre é tempo de interpretá-la.
Num dia de abril de 1970, um homem de 50 anos suicidou-se atirando-se ao rio Sena, em Paris. O mundo perdia então um dos maiores poetas de expressão alemã do pós-guerra (leia-se Segunda Guerra Mundial, que as guerras não acabaram ainda).
Romeno de nascimento, Paul Antschel, na versão germânica, ou Ancel (cuja inversão de sílabas usou para definir seu pseudônimo), sobreviveu ao Holocausto. Mas nos campos de extermínio nazistas perdeu todos os outros a quem amava. Essa desgraça, como naturalmente se pode deduzir, marcou para sempre sua vida e sua obra.
Paul criava neologismos, o que sempre dificulta um pouco as traduções. Focos de luz solar ou sol em pedaços são, para ele, fiapossóis (fadensonne) entre as cuidadosas traduções de Flávio R. Köthe.
Fiapossóis
Sobre o grisnegro ermo
Um pinho –
alto pensamento
agarra o tomluz: ainda
há canções a cantar além dos
homens.
Talvez pela sonoridade e estética que disponibiliza aos que escrevem, além de rica em possibilidades, a língua alemã foi escolhida por autores significativos de diversas nacionalidades para a realização de suas obras. Isso não era incomum. Até nosso Guimarães Rosa apresenta influências dos encantos dessa língua, provavelmente fortalecidas durante o período em que morou em Hamburgo. Escritores hoje clássicos, como o tcheco Franz Kafka, criador do inquietante (e sensível, poucos se lembram disso) A metamorfose, ou o búlgaro Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura, optaram pelo alemão como forma de expressão de sua literatura. Na verdade, a mãe de Paul Celan era uma admiradora e leitora assídua de autores alemães e insistiu para que fosse essa a língua de sua família romena quando ele ainda era um menino.
Paul não trabalha com imagens explícitas, mas com sugestões que abrem opções interpretativas. Isso confere a seus versos uma parcela de enigma que não se transpõe. Também a sensação, à primeira vista, de que não estamos lendo exatamente o que estamos lendo.
Em vão desenhas corações na janela:
o conde do silêncio
conclama os soldados no pátio do castelo.
Será que os mais sensíveis conseguiriam evitar as guerras? Será que é isso mesmo que o poeta nos sugere? Será que é essa a única interpretação possível? Certamente não. Deve haver outras dentro de cada leitor, aguardando decifrações:
Abraçados à janela, as pessoas nos olham da rua:
É tempo de saberem!
É tempo de a pedra querer florescer,
tempo de o coração pulsar pelo que se agita.
É tempo de o tempo ser.
Com a mesma estratégia da repetição, Paul consegue efeitos surpreendentes em suas imagens – por vezes de tirar o sono aos leitores mais atentos, como neste trecho.
Sombria noite.
Sombria noite com prata de sino e oliveiras.
Sombria noite com a pedra que trouxeste.
Sombria noite com a pedra.
Ou neste, do mesmo poema.
Urna de barro.
Urna de barro que a mão de um oleiro concresceu.
Urna de barro que a mão de uma sombra encerrou para sempre.
Urna de barro com o selo da sombra.
Paul nunca viveu na Alemanha. Mas para completar a dimensão trágica que delineou sua vida, entre as pedras que o destino lhe trouxera, escreveu primorosamente na língua daqueles que um dia assassinaram seus pais. A obra de Paul Celan não foi encerrada pela mão de uma sombra. Sua poesia nos conta que sempre é tempo de interpretá-la. Que o tempo não passou como pensávamos. Que os horrores não devem ser esquecidos. Que nosso coração não deve fugir. Que sempre é tempo. Que ainda é tempo.
Nota: somente os dois primeiros fragmentos citados foram extraídos da obra traduzida de Köthe.
Leia mais sobre poesia e outras artes: Käthe Kollwitz
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Comentários
8 respostas para “O misterioso Paul Celan”
A profundidade encontra extrínseca e n’alma que dorme.
Perce amigo.
Trabalhando juntos e falando de assuntos burocráticos, nunca tive oportunidade de expressar minha admiração por tudo que vc escreve. Essa página sobre Celan foi para mim uma lição de literatura, pois só me dediquei à literatura de língua portuguesa e à linguística. Estou adorando seu blog.Vera
É uma honra ter uma mestra como você como seguidora do blog, que bom que gostou.
A proposta é divulgar, além de literatura, conhecimentos em geral, daí a diversidade de temas, cinema, arte etc.
Dispense-me de qualquer erro de transcrição do poema, o citei de cabeça!
Fellipe
Sim, sou professor na área de Português (Literatura, Redação…) e escrevo há um certo tempo.
Esse poema do Celan é antológico e é o que você disse mesmo. No contexto em que viveu, ele até que se saiu bem demais para um sobrevivente do Holocausto.
Perce. O Paul Celan é fd! Quando um professor da faculdade, amigo meu, lho me apresentou, realmente foi-me um impacto estético! Aquele “Fuga sobre a morte”, anaforizado:
Leite-breu da aurora
nós te bebemos à tarde
nós te bebemos ao meio-dia
e de manhã nós te bebemos à noite
bebemos e bebemosEsse poema é de uma desolação muito crua, mutilante!
VC é literário né? ao que pude notar!
Abçs.
Paul Celan, Paul Céu Lá. Sei lá. Ardeu a chama. Chamardeu ou Almafogueou. A tristeza se afogou. A pedra estava em seu bolso. O azul afundou. Levou os sóis girando na roleta do tempo. Aqualizou-se o pensamento que não feneceu. Supraviveu nas linhas e letras de Goethe. Colhidas pelas linhas de vento do Perce. As conchas formadas pelas mãos do Perce. As sementes das palavras que o Perce semeia. O Percemeia. Lavoura de palavras as almas do Perce. Percebe?
Lindo o blog. Literatura digna do João Cabral: faca afiada, pedra pontuda.
Grande abraço!
DjalmaQue nosso coração não deve fugir. Que sempre é tempo. Que ainda é tempo.
Apreciei e saboreei seu artigo.
Luzentes abs
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