Office in a Small City por Edward Hopper

Sete anos em Manhattan

Por vezes não sabemos por que fazemos algo.
Mas um dia alguém descobre por nós.

Conto premiado na antologia Livre Escrita, da Editora All Print, São Paulo.

O prêmio foi entregue em São Paulo, no dia 29.05.2010, no Centro Cultural Antônio Adolpho, Jardim da Saúde.

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Raísa, a criada, anunciou um visitante que pretendia ver-me, sem que eu houvesse sido previamente comunicado. Pedi que o fizesse entrar. Vi, pelos grandes vidros da sala superior, um homem de andar tranquilo, talvez de minha mesma idade, aparentemente cortês, vista a maneira como movia a cabeça e por alguns outros gestos e meneios de agradecimento à criada que o vinha conduzindo jardim acima.

Quando nos vimos de frente, fui tomado por uma alegria muito singular, associada à emoção da surpresa, logo que o reconheci.

“Ei! Como é possível? Como me encontrou?”

Um abraço nos uniu fortemente, longamente.

“O mundo hoje não tem mais segredos”, ele disse.

Encontrava-se ali, em minha casa moderna e espaçosa, esse velho e querido amigo, Robinson, desaparecido há tempos: desaparecidos nós dois, um para o outro, enquanto o tempo se deslocava entre chegadas, partidas e naufrágios.

“Robinson, mal acredito que o estou vendo hoje! Isso merece uma comemoração.”

Ele descartou, com um gesto, qualquer ideia semelhante. Não queria fazer alarde de sua vinda – e não parecia tão feliz quanto eu. Mostrava-se silencioso, poucas palavras, de uma calma doentia, o que não fazia crer, ainda assim, que estivesse se escondendo ou fugindo de alguma coisa.

“Só vim até aqui. Só isso. Afinal, fomos amigos por algum tempo.”

“Claro, mas é um prazer. Você foi meu melhor amigo”, lembrei. “Fomos irmãos.”

“Por algum tempo. Eu nem estava na cidade quando você se casou pela primeira vez, lembra?”

“Ora, não tem importância, eu compreendo. Antes de tudo isso, éramos jovens, solteiros, não tínhamos muito dinheiro naquela época, lembra?”, pontuei bem-humorado, com a sensação de poder dividir com ele nossos possíveis sucessos posteriores. “Mesmo assim, nós nos divertíamos muito. Está lembrado?”

“Sim, muito”, ele repetiu pensativo, enquanto olhava a sala ao redor. “Sim, nós éramos jovens. Sim, tínhamos amigos…”

“Mas, claro, isso é natural. Os nossos amigos também se dispersaram. Enfim, você se casou?”

“Se me casei? Não importa. Não importa mais.”

Num instante, tive pena dele: do tom melancólico que assumiu ao referir-se a esse domínio mágico e duramente real, de fronteiras traçadas por nós mesmos, ao casamento, a uma parceria, o que poderia ter sido pretexto de alguma felicidade ou mesmo de motivação, ainda que não se houvesse estendido por muito tempo. Não há muito que fazer quanto a isso. Nem quanto ao acaso de termos nos conhecido, Robinson e eu, porque as vidas são casuais, mesmo interiormente, e não há quem não tenha vivido, de alguma maneira, situações de crise, sentimentos enigmáticos e desvios indesejáveis. Por vezes não sabemos por que fazemos algo. Mas um dia alguém descobre por nós. E quantos, como eu, não teriam buscado respostas para a vida? – o que afinal significa buscar respostas para si mesmos. Tenho a sorte de reter muitas lembranças, o que tanto me serviu quanto me prejudicou. Ansiava por dividi-las com ele.

“Você foi bem-sucedido. Veja só esta casa. É linda.”

“Eu trabalhei muito, Robinson. Precisamos trabalhar muito para construir a nós mesmos. Nossa casa. Nossa pessoa.”

“Também trabalhei muito”, disse Robinson observando, neutro, cada objeto. “Estudei em boa faculdade, você sabe. Fiz carreira em três grandes empresas. Vivi sete anos em Manhattan. Mas acho que só não soube construir a minha casa. Eu digo, a minha vida.”

“Sete anos em Manhattan? Deve ter sido uma experiência magnífica!”, falei entusiasmado, tentando arrancar-lhe um sorriso.

“Eu estava lá quando tudo aconteceu”, declarou abatido.

“Sim, mas… Falo de você. De sua carreira, de suas conquistas. E então, por que voltou? Como foi isso de trabalhar em outro país?”

“Também trabalhei muito”, repetiu como se não me ouvisse. “Mas não soube…”

Raísa surgiu com uma bandeja, chá e biscoitos. Ora, eu nem havia perguntado a ele se gostaria de uma bebida ou algo assim. Ele agradeceu, não queria nada. Estranhamente, queria conhecer o resto da casa. Parecia lançar olhares para além dos dois corredores de acesso à sala maior, além de um jardim de inverno que anuncia uma curva em direção a outros aposentos, todos muito bem planejados.

“Claro, venha sim, vamos por aqui…”

Minha casa era ampla quando devia ser. Justa, quando devia ser. Estreita e aconchegante, quando devia ser. Eu havia construído todas as variantes, todos os ambientes, para todos os momentos. Eu havia construído tudo.

“Veja só esta casa…”, Robinson sempre em voz baixa, admirando tudo.

Deteve-se à porta de um dos quartos de hóspedes, que permanecia assim, arrumado há dias, sem ter sido usado por alguém. Passou calmamente pela porta. Sentou-se na cama. Deitou-se sem dizer nada, cobriu-se.

“Robinson, será que você… Você gostaria de descansar um pouco?”, perguntei, sentindo-me tolo em seguida, apenas confirmando seu desejo mais evidente. Ele se mostrava cansado, anêmico, sem energias – daí, talvez, por que falasse pouco. Pareceu-me ter adormecido quase imediatamente.

Raísa, um pouco atrás de mim, tendo acompanhado tudo, passou-me à frente, aproximando-se da cama, dirigiu-se a ele. “Se o senhor quiser, posso fechar as cortinas e ligar o…”

Ela não só se interrompeu como já vinha diminuindo seu volume de voz. Observou nosso inesperado hóspede. Pousou a mão em sua testa. Inclinou-se, chegando bem perto do rosto dele o seu rosto.

“Ele não vive mais”, disse ela num tom neutro que me incomodou.

“O quê? Como é possível?”, exclamei, apressando-me a tocar a testa de meu amigo, o pescoço, os pulsos. Robinson estava frio. De fato, não respirava.

“Robinson…”, chamei desconsolado, como se o desaprovasse.

Raísa olhou-me de frente. “O senhor não percebe? Não entende? Ele veio até aqui só para isso. Veio só para morrer em sua casa. Ele não vai acordar mais.”

Considerei sua vida, que eu não conhecia. Suas conquistas, sua carreira, o pouco que ele havia mencionado. Como podia alguém acabar triste, após tudo aquilo? Como podia qualquer coisa tê-lo vencido? Afinal, sete anos em Manhattan…

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

4. Pai a casa torna – anterior

6. As sombras – posterior

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Imagem: Mounira Stott. Nevoeiro em Manhattan. 2004.

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Comentários

8 respostas para “Sete anos em Manhattan”

  1. Avatar de Maris

    Querido Perce, seu conto é lindo! Causa impacto e me faz neste momento prisioneira de várias reflexões. Uma palavra que sempre dão aos meus trabalhos repasso a você: profundo!
    Um abraço. Maris

  2. Avatar de BEL

    Apesar de não conhecer o Mário, concordo plenamente com ele.
    Premio merecidíssimo.
    O conto é de uma sutileza que só voce mesmo poderia ter.
    E me sinto honrada por você me incluir entre as pessoas com as quais dividiu essa obra-prima.
    Obrigada, amigo.
    Bjao.

  3. Avatar de Cris Dakinis

    Esse conto foi a minha primeira leitura da obra de Perce. Maravilhoso conto, com elementos que nos surpreendem ao longo do desenvolvimento da narrativa. Conquista o leitor de imediato. Cativou-me e a muitos outros fãs de Perce, pelo que reparo aqui.
    Parabéns e sucesso sempre!
    Cris:)

  4. Avatar de Danielle Rocha
    Danielle Rocha

    Perce, seu blog está lindo, um sucesso!
    Desejo muito mais sucesso a você sempre… Você é um gênio nas coisas que faz!
    Grande abraço da sua amiga e eterna aluna.

  5. Avatar de Cláudia

    Perce, meu amigo querido, lindo blog. Saudade de você. bjm

  6. Avatar de Geovane Monteiro
    Geovane Monteiro

    Certamente, para cada um, o conto deve ter despertado uma realidade adormecida, talvez incomodando agora, talvez apenas em recordação do que sabemos tanto, mas não percebemos mais. Robinson ausentou-se por sete anos e retornou a seu amigo, tarde demais. Nossos planos e buscas, nossas metas e prentesões, não raro, nos carregam sem termos ido direito e por isso mesmo o retorno, infelizmente às vezes sem tempo de dizermos o quanto as escolhas da vida, as prioridades estabelecidas (inevitáveis?) são apenas uma dolorosa prestação de contas, como uma verdade que se tornou mentira. A neutralidade da criada Raisa é uma ponte em que se sustentam dois passados livres entre chegadas, partidas e naufrágios.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Caro Geovane
      Nesse texto, eu fiz questão de mencionar Manhattan por ser um centro financeiro importante, para enfatizar aquela ideia de alguém ganhar muito dinheiro e não saber construir sua casa (sua vida).
      Escolhi o nome Robinson por ser o nome de um náufrago famoso, Raísa para lembrar raiz, referindo-se ao personagem-narrador estruturado, estabelecido num determinado endereço, num certo tipo de vida.

  7. Avatar de Mario Imori

    Interessante como não paramos para pensar o quão forte pode ser o toque que deixamos nas pessoas! Um pequeno gesto, uma palavra ou apenas um olhar que para nós nada significam, podem se tornar o mundo de alguém!

    Parabéns – prêmio merecido!

    Grande abraço!

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