Office in a Small City por Edward Hopper

Não me venham falar da Lua

Nenhum ponto de exclamação. Nenhuma palavra em tom de lamento. Nenhum comentário ansioso querendo rasgar a garganta.
E tudo começa pela manhã, à frente de um novo dia, o que torna tudo mais terrível.

É o título que dei a uma palestra recentemente apresentada em Jaboticabal, SP.¹ Além de muito bem recebido, guardo dos participantes uma grata lembrança de envolvimento, curiosidade e interação – alguns deles continuaram se correspondendo comigo depois disso, ampliando comentários e observações. Meus amigos Carlos e Érika, que gentilmente me convidaram, concordaram com a temática escolhida, que é também um subtítulo: a linguagem tecendo a literatura.2

Algumas amostras de textos apresentados naquela noite.

O velho chamava-se Santiago. Dia após dia, tripulando sua pequena canoa, ia pescar na corrente do golfo3. Mas nos últimos oitenta e quatro dias não apanhara um só peixe. Nos primeiros quarenta, levara em sua companhia um rapazinho, para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do rapaz, convencidos de que o velho se tornara salao, isto é, azarento da pior espécie, resolveram que o filho fosse trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes apenas em uma semana.

Esse texto abre a clássica narrativa O velho e o mar, de Ernest Hemingway. É composto numa linguagem muito simples, que qualquer leitor facilmente compreenderá. A única palavra que poderia causar algum estranhamento (salao) tem seu significado exposto em seguida, quase imediatamente, não deixando tempo para nenhuma interrogação curiosa. A utilização de números exatos (oitenta e quatro dias, quarenta…) sugere verossimilhança, isto é – vamos explicar também imediatamente –, a impressão de que se trata de uma história real, com ares de relato jornalístico. Essa precisão e essa objetividade contrastam com a ideia supersticiosa que predomina entre os outros pescadores, ao considerarem Santiago um homem desprovido de sorte. A situação inicial de O velho e o mar é uma situação comum, sem aparente profundidade. Mas, no decorrer da narrativa, quando percebemos o que o autor pretende mostrar, nossa relação com o texto assume outro nível de atenção: ele nos sugere, por meio de seu herói, que um homem pode ser destruído, mas não derrotado.

Gabriel García Márquez usa também um tom jornalístico em sua prosa, tornando ainda mais impressionantes os eventos surreais que marcam seus textos. Em seu Vidas secas, Graciliano Ramos (imagem) trabalha de modo a reduzir a adjetivação, elaborando uma prosa mais substantivada, quando trata da família de retirantes percorrendo ambientes hostis. Poderíamos apostar que aquilo tudo aconteceu de verdade, com aquelas determinadas pessoas, especificamente. Bem, então podemos concluir que essa boa dosagem entre o tom jornalístico e a ficção é a fórmula para se escrever um bom texto, por que não? Podemos concluir que, agora sim, entendemos melhor como se escreve um bom romance, não é mesmo?

Não. Não é nada disso. Não há regras para se escrever um bom romance. Temos apenas algumas pistas sobre sua estrutura. Mais nada. O texto de Hemingway é apenas uma amostra. Uma possibilidade estilística. Uma opção.

Início de outro texto muito conhecido.

Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado, viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de inseto.

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.

Duas traduções do parágrafo de abertura de A metamorfose, por Franz Kafka, que nos conta de maneira também muito simples o que aconteceu com o desafortunado Gregor Samsa, um destino absurdo e miraculoso que não desejamos nem para… Bem, talvez o desejemos a alguns, não importa. O que nos chama a atenção é o fato de essa metamorfose ser relatada sem nenhum espanto, nenhuma surpresa. Nenhum ponto de exclamação. Nenhuma palavra em tom de lamento. Nenhum comentário ansioso querendo rasgar a garganta. É como se o autor nos dissesse: “Gregor Samsa despertou, sentou-se na cama e escovou os dentes.”, o que também seria curioso – isso de escovar os dentes sentado na cama. Mas não, nada se compara a uma transformação desse nível: tornar-se um inseto ou qualquer outro animal que seja, vamos admitir, não importa a espécie.

E tudo começa pela manhã, à frente de um novo dia, o que torna tudo mais terrível. A expectativa foi invertida, pois temos como noção cultural, talvez arquetípica, comparar algo bom à luminosidade, e seu oposto. Quando Gregor Samsa despertou… – é assim que começa o pior sonho para ele.

A prosa de Kafka tem esse poder de nos direcionar a um absurdo como sendo algo cotidiano, como se coisas estranhas e impensáveis acontecessem normalmente ao nosso redor – o que, sob certo aspecto, é verdade. Mas nada de casarões escuros e portas que rangem. O terror se manifesta sem suspense. Sem silêncios amedrontadores. Sem sustos. Sem gritos.

Escolhi apresentar duas versões do mesmo texto para que se observe que o estilo permanece inalterado: a linguagem nos conduz da mesma maneira, revelando situações anormais, sem dúvida impossíveis de se realizar, uma sequência de eventos inquietantes – mas sem ênfase, sem notas de perplexidade. O absurdo à nossa volta, a começar por nossa manhã. O pesadelo à luz do dia.

Eu disse “impossíveis de se realizar”, mas só fisicamente. E que coisa estranha é essa? O que temos com isso, se um sujeito virou um inseto lá nos idos do século 20? Quando lemos fábulas, o que temos com o leão, a raposa, o corvo? Não nos importa se o leão tem boa saúde ou se o papagaio vive de pequenas trapaças. Mas qual de nós não se sentiu, em algum momento, incapaz de sair da cama e enfrentar o dia, como se estivesse frente a uma montanha escarpada? Gregor não consegue deixar o quarto, não consegue sair para o trabalho, não consegue explicar a si mesmo a razão de todos esses atos. Isso se chama depressão. A metamorfose pode comportar várias leituras, todas elas sem esperança. Por exemplo, todos passam a evitar Gregor Samsa, a sentir repulsa por ele, passam a ter nojo dele. Portanto, o que contava mesmo era a aparência física, seu aspecto físico, era isso?  O que é ele então?

Resistindo à tentação de apresentar somente amostras de aberturas de obras literárias, destaquei este breve depoimento do herói, sobrevivente de um naufrágio, no clássico de Daniel Defoe.

Nunca mais os vi, nem sinal deles, a não ser três chapéus, um boné e dois sapatos que não eram parceiros.

Robinson Crusoe é um dos náufragos mais conhecidos da literatura, somente comparável ao doutor Lemuel Gulliver, de Swift. A propósito desse trecho, J. M. Coetzee, autor de Elizabeth Costello, com seu apurado senso de observação, escreve:

Dois sapatos, não parceiros: não sendo parceiros, os sapatos deixaram de ser calçados, passaram a ser prova da morte, arrancados dos pés dos afogados pelos mares espumosos, e atirados à praia. Nenhuma grande palavra, nenhum desespero, apenas chapéus, bonés, sapatos.

Para impressionar o leitor, alguns autores optaram pela neutralidade. O estilo objetivo de sua prosa, sem envolvimento sentimental, por vezes nos comove. A calma nos inquieta. O silêncio incomoda. A ausência de exclamações nos sufoca. Até sentimos vontade de gritar. Para impressionar o leitor, esses autores, assim como seus personagens, não gritam.

1 O título foi escolhido a partir de um texto de Samuel Beckett, Molloy: “Que não me venham falar da lua, não tem lua na minha noite, e se me acontece falar de estrelas, é por descuido.”. Tratarei dele em um próximo post sobre o tema.

Essa mesma palestra foi apresentada posteriormente na Fundação Educacional de Ituverava, mais um momento prazeroso e gratificante, outra memória de uma recepção agradável, de pessoas gentis e interessadas.

Outras traduções conservam Gulf Stream, iniciais maiúsculas, sugerindo um topônimo.

Algo mais sobre narrativas e curiosidades literárias: O bom ladrão, os dentes da caveira, atentado em Paris, cômico por ter sido sério

As novas invasões inglesas

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Comentários

3 respostas para “Não me venham falar da Lua”

  1. Avatar de Carla Alexandra Ezarqui
    Carla Alexandra Ezarqui

    Olá, Perce! É com grande satisfação que registro aqui ter participado da palestra e ter tido o primeiro contato com as suas palavras. Inclusive só fui descobrir que o trecho de “Tarde e jogos com Ester” era de sua autoria quando pesquisei pelo início do parágrafo do qual anotei e fiquei contente ao passo que admirei a sua humildade.
    Foram horas muito ricas… de palavras, além de ter sido um momento de desconstração dentro da atenção que ele requeria, visto que o conteúdo foi transmitido de uma forma peculiar, onde o modo simples de expressar, revelava um grande saber.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Carla
      Muito obrigado por seu comentário, fico contente mesmo quando vejo que tantas pessoas apreciaram a palestra, tive um retorno muito gratificante desse encontro. Sobre aqueles textos, não foi modéstia não, eu me esqueci mesmo de dizer que eram meus aqueles dois últimos. Mas era isso mesmo que eu queria mostrar, que um mesmo autor pode assumir linguagens diferentes em contextos diferentes, é como se vestíssemos o texto com o traje mais apropriado ao momento.

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